quarta-feira, 13 de março de 2013

Parte V

Acordou tarde. A noite foi passada de forma intermitente, conforme o ritmo da actividade cerebral. Não gosta de sonhar. Sente-se cansado. Adormeceu profundamente, quando a cabeça, de tanto imaginar realidades alternativas, cedeu ao cansaço. Lá fora o trânsito circulava na cadência regular de um sábado de manhã. Demorou a dar acordo de si. Dando conta de que está a acordar tenta recordar-se do último sonho, mas a cabeça atraiçoa-o: no momento em que se dá conta que quer recordar, a memória do sonho esvai-se como água que escorre por entre os dedos das mãos em concha de uma criança pequena.

Levanta-se. Resiste à tentação de ficar às voltas na cama com receio que a leve dor de cabeça que sente, se agrave. Dirige-se à casa de banho. Depois de se aliviar lava as mãos e passa água nos olhos. Prepara-se para fazer a barba. Apesar de ser sábado há rotinas que nem o fim-de-semana altera. Estranho o ritmo a que lhe cresce a barba. Quanto mais a corta, mais depressa ela cresce. Parece que o está a desafiar. Nas férias é diferente. Nas férias dá-se esse prazer: não faz a barba antes de esta ter uma semana. É mais difícil fazê-la quando está comprida, mas andar de barba por fazer é a sua imagem de marca das férias.

Abriu o armário, tirou o pincel, a lâmina de barbear e o sabão. Faz a barba à moda antiga. Na verdade, por vezes pensa que deveria ter nascido umas décadas antes. Há pessoas que dizem que estão à frente do seu tempo. Ele sente-se atrás do seu tempo. Não será, portanto, um visionário. Antes um pessimista. Não deixam de ser curiosos os rótulos que nos colam e que por vezes, inadvertidamente colamos a nós mesmos. Ensaboa a cara com o pincel e a espuma que fez com o sabão. Passa a lâmina pela pele cortando os pêlos com precisão cirúrgica. Não fossem os seus dedos grossos e desajeitados e teria evitado o corte junto ao nariz. E no pescoço. E no queixo... O acto de se barbear está à beira de se tornar uma carnificina. Baixa a lâmina e apoia-se no lavatório de cerâmica branca. Respira fundo e recomeça. Depois de mais umas passagens para eliminar os restos de pelos que teimosamente se colam à pele, passa a cara por água, limpa-se a uma toalha, arruma o pincel, o sabão e a lâmina e sai para a cozinha.

Os seus pequenos almoços são cada vez mais frugais. Torra o último pão que resta no saco, coloca-lhe manteiga e mastiga-o ruidosamente encostado à banca. Volta ao quarto, abre a janela, deixando o estore corrido e veste-se rapidamente. Calça os ténis e sai de casa levando as chaves na mão e uma nota no bolso de trás das calças. Os trocos para o jornal seguem no bolso da frente do lado esquerdo. Fecha a porta e ao virar-se para a rua é atingido de surpresa pelo sol, que brilha mais intenso agora que a nuvem branca que o ocultava se deslocou pela força do vento que sopra fraco. Atravessa a rua na direcção do café. Compra o jornal, pastilhas elásticas e troca olhares com a filha do dono do café. Nunca trocaram mais do que isso. Olhares. E mesmo sem haver palavras entre eles muito se tem dito pelos olhos. Sim que o desejo fala pelos olhos e pelos poros da pele.

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